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FLORES SÉSSEIS, VIDROS E ÁGUAS: CONSTELAÇÃO DE OSSOS

1. O ENCANTAMENTO PELOS MATERIAIS

Vidros e águas se entendem, agarram-se uns aos outros como um pensamento bom atrai outro de sua estirpe, como as pedrinhas de um caleidoscópio fazem umas com as outras, ou seja, abraçam-se e soltam-se num emaranhado nunca igual, mas sempre com o intuito de união, sua sina sendo a de viverem unidas, mantendo a própria identidade – o que é cada vez mais difícil, mais improvável entre os humanos. Águas e vidros: água doce e vidro plano, água salgada e vidro temperado, água suja e vidro opaco, água limpa de bica e vidro colorido  de igrejas e bordéis, sim, de tudo se faz canção e caução, e o coração na curva de um fio d’água estalando gotículas nas costas dos lagartos (agora tu sabes a razão do sorriso do lagarto, uma delas), úvula e cio, nonada, tiros que o senhor ouviu..., o rio cheio de mormaço, espelho d’água é a sensação de um rio calmo calmo calmo, tu vais com ele, entras nele até a outra margem, à terceira e à quarta margens do rio tu vais e voltas, lendo nuvens, blasfêmias e encômios a ti dirigidos, ou não, tu te esfalfas mas te agarras a algo ou a alguém, assim como os vidros e as águas deslizam uns contra ou sobre os outros, assim como o veneno e a cobra andam juntos, e a fé e o seu areal se enterram juntos. Lembro-me de dois versos recorrentes: “as veias abauladas da fronte que revelam / o esforço que custa ser mau.” *

De vidros e águas se fala aqui, mas não só, porque há mais mistérios do que nuvens, a glote do mundo é vasta, vasto mundo iracundo, são duas da manhã, e alguém entra num bar e lanchonete, quer algo, a gente sempre quer algo, é da nossa sina o verbo querer, genética do querer, a psicologia ou o psiquismo todo ele voltado para prender, aprender, apreender, nada diferente pode haver, e assim é que exercita cotidianamente o preênsil de sua cauda cada pessoa, a cauda do pensamento é preênsil como preênsil é a cauda dos macacos e de outros bichos menos votados (já percebeste de fato o que um polvo faz com as suas caudas, braços ou tentáculos ?). Voltemos aos vidros transparentes e às águas claras, ou à sua renovação problemática, por custosa e duvidosa, eivada de senões e sequelas. Água de beber / bica no quintal / sede de viver tudo. *

2. A BIOGRAFIA DA NOITE
Constelação de ossos nadando em versos, cantando em prosa algum possível cansaço, digo ‘possível’ porque é notório que os raros escritores verdadeiros não se cansam, a exemplo dos filhos e filhas da mãe das artes – os músicos, sim, os músicos nunca se cansam, nada lhes pode coarctar o intento de entrarem na pauta do dia, na partitura da noite; o melhor, então, é cooptá-los e com eles tecer nova senda (luminosa), novo tecido social, novos patamares psíquicos.

3. UMA ALMA NA TEMPESTADE
Constelação de Ossos é o título do novo livro da BÁRBARA LIA (Curitiba), uma autora de valor literário mais do que medido, sempre esforçada, entusiasmada com o que este ofício lhe pode dar ao integrá-la cada vez mais com o seu entorno imediato e com o mundo. Ela tem sintaxe própria, o que é pilar básico para quem escreve. Nesta novela a autora canta seus meandros de forma sem dúvida mais crua, portanto, mais limpa do que comumente nos é dado sermos no cotidiano, nas relações sociais inevitáveis, até porque há-se que ser cortês com o Outro. As aparências enganam, diz essa que é uma das melhores letras da MPB. O livro é então sinônimo da liberdade da personagem Lynx – uma ‘cantora da noite’, liberdade essa que ela não joga pela janela assim sem mais nem menos, nada disso: nota-se o apego da personagem ao desprendimento, note bem a antítese: o apego ao desprendimento, e assim ela vai costurando risos bons (há os perversos), reveses, o canto às vezes desafina, saindo de sol sustenido maior, indo para ré menor, ou talvez para alguma notação que eu mesmo desconheço. E tu também. Não se trata de uma novela de amargura, como eu entendi que é, por exemplo, a grande obra Um Copo de Cólera, não, não se trata de catarse, nem se trata de ver a vida passar como se com ela já nada houvesse em comum (no grande livro atrás citado, o casal personagem também não fica estático, e o seu imbròglio mostra isso), assentando-se num bar qualquer entre tantos mundo afora. Não, aqui não se trata de ir de bar em bar (lembras ?).

Então, escuta bem o que ela diz, em solilóquio, lá pelas tantas: “No palco cantando de olhos fechados, revi a árvore lilás do sonho da noite anterior.” Portanto, prova cabal de que o sonho está com ela, e quem sonha tem possibilidade de viver  de fato uma realidade construída para dois. Os sonhos não envelhecem.*


OBS: Alusões a João Guimarães Rosa, Bertolt Brecht, Clube da Esquina, Tunai e Elis Regina, Raduan Nassar.
*****
Foto e texto: Darlan M Cunha

Comentários

  1. Que texto ótimo!... Uma homenagem bem merecida para a prosa pulsante e poética da Bárbara Lia, que consegue traduzir e transportar águas e vidros, pétalas e espinhos...
    Abraços alados!

    ResponderExcluir
  2. Muito obrigado, ANALUKA

    pela visita e pelo comentário realmente claro acerca do trabalho da escritora Bárbara Lia.

    A Casa é sua. Novamente, obrigado.
    DARLAN M CUNHA

    ResponderExcluir

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